segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Em busca de um substituto para o sangue

A necessidade de encontrar uma substância capaz de substituir o sangue é tão grande que muitos consideram esse possível substituto o ‘cálice sagrado’ da traumatologia.
Durante toda a história humana, o sangue tem sido relacionado à vida e à vitalidade.  Já na Bíblia é dito que “o sangue é a vida” (Deuteronômios 12: 23). Mas a descoberta da circulação sanguínea ocorreu apenas em 1628, pelo médico britânico William Harvey (1578-1657), e o uso terapêutico do sangue é ainda mais recente. Somente no início do século 19 foi feita a primeira transfusão de sangue humano, atribuída ao médico inglês James Blundell (1791-1879). Até o início do século 20, os resultados obtidos com as transfusões foram, em geral, catastroficamente negativos. 
Apenas na década de 1920, isto é, há menos de 100 anos, os três maiores riscos associados a transfusões foram efetivamente controlados:  a coagulação sanguínea, a infecção e a incompatibilidade dos grupos sanguíneos.  O controle deste último fator de risco deve-se às pesquisas feitas pelo médico austríaco Karl Landsteiner (1868-1943), que classificou diferentes tipos sanguíneos, atribuindo-lhes as letras A B e O (o que ficou conhecido como sistema ABO) – trabalho que lhe rendeu o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1930. Posteriormente, descobriu o fator Rh, que complementa a classificação do sangue e também está relacionado a problemas de incompatibilidade nas transfusões.
Ao longo da história, muitas substâncias foram investigadas como substitutos ao sangue humano para uma de suas funções: o transporte de oxigênio. Entre elas, estão o leite, o vinho, a cerveja, o ópio, soluções salinas, o sangue animal etc.
Apesar de comum, o termo ‘substituto sanguíneo’ é evidentemente incorreto, uma vez que, até a presente data, não existem fluidos capazes de realizar todas as funções sanguíneas, excetuando-se o próprio sangue.
 Esse fato é reconhecido pelo médico norte-americano William Amberson, que, em sua revisão publicada em 1937, escreve: “O sangue de vertebrados é o fluido mais complexo encontrado no mundo dos organismos vivos. É composto por dezenas de ingredientes essenciais e realiza uma multiplicidade de atividades; sendo o carreador fluido de uma variedade de substâncias químicas e integrações de funções hormonais, bem como a fonte de alimento e oxigênio para todos os tecidos, ele desafia a síntese laboratorial.  É elementar o reconhecimento da inexistência de um substituto completo para o sangue. Entretanto, biólogos e fisiólogos, assim como os clínicos, deparam-se frequentemente com situações nas quais o sangue não pode ser obtido, ou em que o problema em questão somente pode ser resolvido com uma simplificação de condições, de forma que um substituto sanguíneo tem se tornado uma das maiores necessidades para os laboratórios experimentais”.

Urgência atual

A necessidade apontada em 1937 ainda persiste e é agravada por eventos recentes, como o aumento da expectativa de vida e consequente envelhecimento populacional, o desenvolvimento da medicina, o aumento dos custos relativos às bolsas de sangue etc. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são feitos aproximadamente 92 milhões de doações por ano no mundo, sendo metade realizada em países desenvolvidos, que representam cerca de 15% da população mundial.  
Adicionalmente, cerca de 65% das doações e coletas mundiais de sangue estão concentrados em apenas 10 países:  Estados Unidos, China, Índia, Japão, Alemanha, Rússia, Itália, França, Coreia do Sul e Reino Unido. Considerando a estimativa de usoper capita de sangue para os Estados Unidos, que é de 1 unidade a cada 25 pessoas, calcula-se um déficit anual de mais de 200 milhões de unidades de sangue, caso o mundo tivesse o mesmo nível de qualidade em saúde.

A manutenção do sistema de bancos de sangue é outro desafio a ser enfrentado. Especialmente após o advento da epidemia de Aids em 1980, os bancos de sangue e as transfusões como um todo sofreram grandes impactos. Ao se verificar a possibilidade de propagação da Aids por meio de transfusões, desenvolveram-se intensas críticas e questionamentos quanto à eficácia e segurança do uso de sangue, que perduram, com razão, até hoje.
Apesar de salvar muitas vidas, a transfusão de sangue apresenta muitas preocupações, não apenas relacionadas aos eventos adversos da terapêutica, mas também a questões logísticas, econômicas e sociais. Do ponto de vista terapêutico, as transfusões de sangue implicam, além do risco de incompatibilidade, transmissão de micro-organismos patogênicos, diminuição da capacidade de defesa do organismo, lesão pulmonar aguda, reações hemolíticas (que causam rompimento dos glóbulos vermelhos), aumento do risco de morte (proporcional ao volume sanguíneo infundido) e reação inflamatória sistêmica aguda, entre outros.
Com a percepção de novos riscos e a insurgência de novas análises, maiores custos são envolvidos na coleta e maior número de unidades de sangue é descartado por não atender aos novos padrões de qualidade. A OMS estima que 1,6 milhão de unidades de sangue foram descartadas em 2008 devido à presença de marcadores de infecção para doenças transmissíveis por transfusão, como Aids, hepatites B e C e sífilis. E, apesar da drástica redução da chance de transmissão dessas doenças observada em países ricos, naqueles considerados pobres esse risco ainda é bastante alto. A OMS aponta que, em 2011, 39 dos seus países-membros não realizavam rotineiramente no sangue doado testes para Aids, hepatites B e C e sífilis, um fato extremamente alarmante.
Você leu apenas o início do artigo publicado na CH 329. Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista e ler o texto completo.
Marcos Camargo Knirsch e Bronislaw Polakiewicz 
Departamento de Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica,
Faculdade de Ciências Farmacêuticas,
Universidade de São Paulo
Attilio Converti 
Departamento de Engenharia Civil, Química e Ambiental,
Escola Politécnica,
Universidade de Gênova (Itália)
Fonte: ciência Hoje